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A vida nua e crua

  • Foto do escritor: Marise Cotrin
    Marise Cotrin
  • 30 de set.
  • 2 min de leitura

Cresci trancada em um espaço sem nome.

Não era grande nem pequeno, apenas o bastante para me mover de um lado para outro.

Pelas janelas, o sol entrava e lembrava que havia vida lá fora.

Até que, certa manhã, acordei no escuro: alguém havia fechado cada fresta de luz.

E tudo o que restou foi o medo.


A dor me encontrou antes que eu soubesse quem eu era.

Nunca vi de onde vinham os golpes, mas sempre me atingiam em cheio.

Caía, chorava, pedia socorro. As lágrimas me aqueciam no chão frio.

No início levantava pelo medo.

Depois, porque entendi que permanecer caída doía ainda mais.

Aprendi a suturar feridas, a trocar curativos, a suportar.

Até gostar da dor… porque era a única coisa constante.


Mesmo no escuro, o olho aprende a inventar caminhos.

Descobri onde estavam as janelas.

Abri uma delas e o sol tocou minha pele como se dissesse: você ainda existe.

Vi borboletas, ouvi vida.

Sorri pela primeira vez em muito tempo.

E desejei voar.


Toda prisão tem uma saída, o difícil é acreditar nela.

Um dia, a porta estava aberta.

Fiquei horas olhando para fora.

Criei coragem e caminhei além da porta.

O sol queimava, o vento era forte, e as pedras machucavam meus pés.

Voltei. A dor já era familiar, quase confortável.

E percebi: o perigo não era o que estava fora.

Era me acostumar tanto com a dor a ponto de chamá-la de lar.


As perguntas que fiz ao mundo sempre voltaram em forma de reflexo.

Em meio a tantas dúvidas, questionei o que havia depois das pedras.

Ouvi uma voz calma que não trouxe respostas… apenas um espelho.

“Não pergunte a mim. Pergunte a si mesma.”

No silêncio, compreendi que o vazio não se preenche: se enfrenta.

A angústia era fome de tristeza.

O vazio era um quarto sem eco.

E a solidão, essa eu transformei em companhia.


Recomeçar não é nascer de novo, é escolher não morrer todo dia.

Tomei coragem e saí outra vez.

O sol queimava, mas aprendi a buscar sombra.

Calcei meus sapatos contra as pedras.

As borboletas voavam longe, até que aprendi o caminho para alcançá-las.

Os golpes continuaram, mas já não me derrubavam.

Descobri que nada é eterno: nem dor, nem pessoas, nem ciclos.

Tudo passa, dói, mas passa.


A vida não me explicou nada: apenas me treinou até eu aprender.

Me desmontou inteira, até eu aprender a me remontar.

Me fez cúmplice do vazio, amiga da solidão.

E me ensinou que não há cálice amargo que dure para sempre.


Minha história não é só minha.

Ela também é de quem renasceu.


Não fui a primeira a cair e levantar, nem serei a última.

A dor também é coletiva, mesmo quando nos isola.


Hoje sei: ninguém pode me salvar além de mim mesma.

A vida é nua e crua. Sem enfeites, sem trilha sonora.


O espaço não mudou. Eu mudei.


Cresci trancada em um espaço sem nome.

Hoje caminho pelo mundo, livre.

O que mudou não foi o espaço.

Fui eu.


 
 
 

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